Crianças pobres só atraem nossa atenção, e com grande
estardalhaço, quando estão envolvidas em tiroteios, assaltos, estupros ou
assassinatos. No restante do tempo são invisíveis. É como se não existissem.
Campo Grande, de Sandra Kogut, rompe com essa indiferença
passiva ao trazer para diante dos nossos olhos dois desses pequenos seres, os
irmãos Ygor (Ygor Manoel), de uns oito anos, e Rayane (Rayane do Amaral), de
uns seis. Eles aparecem de surpresa no apartamento de Regina (Carla Ribs), uma
mulher de classe média e meia-idade, que não sabe quem são e nem o que fazer
com eles.
Não cabe reproduzir aqui a saga de Regina em busca da família
dos dois irmãos ou, na falta dela, de um abrigo adequado para eles. O que
importa é que, o tempo todo, essas duas criaturas ariscas e lacônicas
apresentam-se à personagem (e por extensão a nós, espectadores) como um enigma
a ser decifrado. Sua irrupção no apartamento de Regina não apenas desarranja sua
vida como também revela a distância entre dois mundos, o abismo vertiginoso
entre Copacabana e Campo Grande, bairro da zona oeste carioca que dá título ao
filme e de onde os irmãos dizem ter saído.
Na aflição de Regina há um movimento pendular entre o desejo
de livrar-se logo do problema e a necessidade de compreender aquelas crianças,
de protegê-las de algum modo das durezas do mundo. Entram em jogo também suas
próprias carências afetivas de mulher recém-separada e com um relacionamento
difícil com a filha (Julia Bernat).
Mundo fragmentário
Resumindo assim, pode-se dar a impressão de um melodrama
social corriqueiro, mas o filme não é nada disso. Sua força e sua originalidade
estão no seu modo de construção, que preserva e exacerba o caráter
fragmentário, truncado, incompleto do espaço físico, bem como da identidade dos
personagens e das relações entre eles.
A paisagem urbana que o filme apresenta é de um grande
canteiro de obras, com tapumes e guindastes obstruindo parte do quadro, sob o
som de motores, serras e bate-estacas. A câmera é colocada no mais das vezes ao
nível do olhar das crianças, o que torna tudo mais ameaçador e opressivo. O
mundo é um lugar confuso e inóspito, sobretudo para esses pequenos personagens
a quem todos olham com desconfiança ou indiferença, quando olham.
A relação tensa e instável entre a adulta Regina e o menino
Ygor faz lembrar em alguns momentos Gloria (1980), de John Cassavetes, e sua
mal disfarçada versão brasileira, Verônica (2008), de Mauricio Farias. Só que
de Campo Grande o crime está ausente, bem como as armas e a violência
explícita.
No filme de Sandra Kogut não há maniqueísmo, nem discurso
sociológico, nem ênfase declaratória, nem resquício de pieguice. O olhar da
diretora é ao mesmo tempo delicado e franco. Equilibra admiravelmente o
registro documental, vívido e despojado (graças em grande parte à habilidade do
diretor de fotografia Ivo Lopes Araújo), com a segurança narrativa que faz tudo
aos poucos se esclarecer, mas de modo indireto, solicitando a participação
ativa do espectador.
As coisas parecem se passar naturalmente diante de uma câmera
invisível – não no sentido da invisibilidade “clássica”, em que a decupagem
cria uma continuidade macia, sem tropeços, mas sim no de uma captação
espontânea e provisória, que colhe os acontecimentos de modo parcial, quando já
estão em curso (in media res, para dizer de um modo pernóstico). Não há
descuido aqui: os enquadramentos são sempre os mais expressivos e ricos de
informação. Mas há uma porosidade que permite que a cidade respire e pulse como
os próprios personagens.
Atores mirins
Uma última palavra sobre o elenco. Se Sandra Kogut já
demonstrara, em Mutum (2007), uma grande competência para dirigir crianças, aqui
esse talento se mostra prodigioso: raras vezes se viu na tela um desempenho tão
crível e pungente como o de Ygor e Rayane. Carla Ribas, que até agora teve
poucas mas marcantes aparições no cinema (O outro lado da rua, A casa de Alice,
O abismo prateado) oferece aqui sua mais tocante e corajosa atuação.
Por fim, cabe lembrar que o filme não estava programado para
nenhuma das dez salas de cinema existentes no bairro de Campo Grande, quase
todas ocupadas com blockbusters americanos, mas um movimento de moradores
conseguiu que fosse exibido num shopping local. Agora outros bairros
periféricos do Rio, sobretudo da zona norte, mobilizam-se para ver Campo
Grande. Essa pressão para a ampliação do circuito de certa forma é um
desdobramento do projeto político, ético e estético do filme, de abertura,
inclusão, conhecimento e troca.
Fonte: José Geraldo Couto
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