Por Maria Regina Fay de Azambuja, Procurador de Justiça.
Como se comporta o sistema de Justiça frente à criança privada do direito à convivência familiar?
O que espera a criança privada do direito à convivência familiar do sistema de Justiça?
O sistema de Justiça, composto de várias instituições e profissionais, pelo que podemos observar através dos dados que hoje foram apresentados, comporta-se, por vezes, de forma oposta ao que vem expresso na Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, adotada pela Assembléia Geral das Nações Unidas, em 20/11/98, ao que dispõe o art. 227 da CF/88 e, em especial, ao que determina o Estatuto da Criança e do Adolescente, em vigência desde 1990.
Diz a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, em seu artigo terceiro: “todas as ações relativas às crianças, levadas a efeito por instituições públicas ou privadas de bem-estar social, tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos devem considerar, primordialmente, o interesse maior da criança”.
O Brasil assinou a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, em 26/01/90, vindo a promulgá-la em 21/11/90. Para se ter noção da magnitude do documento internacional, na atualidade, apenas os Estados Unidos e a Somália não o ratificaram.
Há no mínimo doze anos documentos internacionais e medidas legislativas já alertam os tribunais, as autoridades administrativas e os órgãos legislativos brasileiros para a necessidade de atentar para o maior interesse da criança.
O Estatuto da Criança e do Adolescente, em sintonia com o artigo nono da Convenção, afirma que toda criança ou adolescente tem direito de ser criado e educado no seio de sua família e, excepcionalmente, em família substituta.
Diz, ainda, que o abrigo é medida provisória e excepcional, utilizável como forma de transição para a colocação em família substituta, não implicando em privação de liberdade.
Segundo a Convenção, a separação da criança de sua família só deve ocorrer em casos específicos, como por exemplo, nos casos em que a criança sofre maus-tratos ou descuido por parte de seus pais, ou quando estes vivem separados e uma decisão deve ser tomada a respeito do local da residência da criança.
A população estudada nos mostra que no universo de 91 crianças/adolescentes abrigados, 78% foram afastadas de sua família natural em decorrência de negligência, 11% por abuso sexual, 3.3% por orfandade e 7.7% em decorrência de outros motivos .
Portanto, quando a vida da criança afastada do convívio familiar chega ao sistema de Justiça, esta criança já carrega as marcas de inúmeras situações de maus-tratos e violência, independente da sua idade cronológica.
Hoje, por tudo o que ouvimos na explanação do Dr. Salvador Célia, da Assistente Social Suzana e da Jornalista Helena Martinho, não podemos mais desconsiderar a importância dos primeiros momentos de vida de um bebê; não podemos mais dizer que o bebê não sofre e tão pouco que não carrega as marcas, positivas ou negativas, registradas desde o momento em que ao mundo veio e até mesmo relativas ao período que antecede o seu nascimento.
Quando a criança privada do direito à convivência familiar chega ao sistema de Justiça precisamos recebê-la com a máxima prontidão, atenção, rapidez e competência, a fim de evitar que novas violências contra ela venham a ser praticadas, desta vez, em nome do poder público.
Indiscutivelmente, nossa responsabilidade é imensa. Opinar ou decidir pelo afastamento de uma criança de sua família, assim como pode ser uma medida de proteção extremamente eficaz, capaz inclusive de garantir-lhe a continuidade da vida, pode também ser mais uma forma de maltratá-la e violentá-la.
Como melhorar, então, nossos desastrosos índices?
Buscar respostas para este e outros questionamentos é que nos levou a organizar este evento, denominado de INFÂNCIA EM FAMÍLIA: UM COMPROMISSO DE TODOS.
Muitos esforços foram despendidos, por muitas pessoas, para que estivéssemos hoje aqui reunidos. Foi preciso sonhar com a possibilidade, como já declarou a Dra. Maria Ignez Franco Santos, na abertura dos trabalhos. É preciso acreditar na capacidade de mudança e de aperfeiçoamento de nossas práticas. É preciso investir numa proposta de trabalho interdisciplinar, é preciso envolver as novas gerações, os profissionais das diversas áreas do conhecimento, é preciso contar com o trabalho voluntário de tantas e tantas pessoas que aqui estão para que possamos depositar fé na possibilidade de melhorar o atendimento dispensado à criança privada do direito à convivência familiar.
Constatar que 12.1% das crianças e dos adolescentes abrigados não possuem qualquer tipo de processo ou procedimento é admitir que este percentual está sendo literalmente negligenciado pelo sistema de proteção e pelo sistema de Justiça .
Constatar que 6.6% dos processos estão arquivados quando as crianças ainda permanecem na Instituição é admitir que este percentual de vidas, para o sistema de Justiça, é caso encerrado, é caso de arquivo.
Como fica a vida destas crianças e adolescentes institucionalizados? A quem interessa buscar uma solução a esta população privada do direito à convivência familiar?
Estas são algumas das muitas perguntas que precisamos responder.
Quando a criança é privada do direito à convivência familiar, não raras vezes, a família, há muito, já vinha sinalizando suas dificuldades para atender adequadamente o filho. Normalmente é cliente assídua do Conselho Tutelar, às vezes da Delegacia de Polícia, tendo passando por inúmeras instituições de proteção e, por vezes, por várias instituições de saúde.
É comum, a estas famílias, faltarem noções mínimas de higiene. A doença mental está presente em muitos casos. O desemprego e o alcoolismo, em regra, se fazem acompanhar. Faltam condições mínimas de habitação, inexiste uma rede de apoio junto à família ampliada capaz de auxiliar na reestruturação familiar. Escassas são as políticas na área da educação, da saúde, e da assistência social. Os papéis dos pais e filhos se mostram deslocados, fazendo com que os filhos, muitas vezes, tenham que buscar o sustento e a proteção dos pais. É do censo de 2000 do IBGE que vem o informe no sentido de que, no Brasil, 12.589 crianças e adolescentes, entre 10 e 14 anos, se dizem responsáveis por suas casas (Correio do Povo, 26/12/01).
Oportuno mencionar que ao sistema de Justiça, e conseqüentemente aos abrigos, aportam essencialmente famílias, crianças e adolescentes pertencentes à classe social menos favorecida, excluídas do gozo de inúmeros direitos fundamentais que a Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do Adolescente lhes asseguram. Não haverá maus-tratos à criança e ao adolescente nas famílias de classe média e alta? Por que esta população não chega ao sistema de Justiça?
Constatada falta grave praticada por um ou ambos os pais, conforme dispõem os arts. 1.637/1.638 do Código Civil de 2002, ou, diante do descumprimento dos deveres paternos, enunciado no art. 22 do Estatuto da Criança e do Adolescente, o caminho legal é o ajuizamento de ação de destituição ou de suspensão do poder familiar. Através de uma sentença judicial, os pais perdem ou são suspensos de exercerem o poder/dever sobre os filhos. Em regra, quando afastados dos filhos, os genitores, que permanecem excluídos de programas de atendimento, rapidamente, buscam gerar novos filhos, estabelecendo-se uma cadeia sem fim de violência intrafamiliar.
Nas hipóteses em que for decretada a destituição do poder familiar, as crianças e os adolescentes deveriam ser, de imediato, incluídas no cadastro para adoção. Verificamos, no entanto, que 84.6% da população , no período estudado, cujos pais haviam sido destituídos do poder familiar, não constavam do cadastro da adoção, como determina o artigo 50 do Estatuto da Criança e do Adolescente. Em outras palavras, 84.6% das crianças cujos pais haviam sido destituídos do poder familiar não foram disponibilizadas para adoção, quer por brasileiros, quer por estrangeiros. Seu destino, via de regra, passa a ser o abrigo, até atingir a maioridade, como nos foi revelado pelo vídeo que assistimos na parte da manhã, produzido pelo Instituto Amigos de Lucas.
Nas hipóteses menos severas, em que a ação ajuizada for a de suspensão do poder familiar, permite-se que, ao longo da tramitação do feito, condições possam ser impostas aos pais, com o fim de possibilitá-los readquirirem aptidão para o exercício da guarda e do poder familiar sobre os filhos, valendo esclarecer que, a falta ou carência de recursos materiais, na sistemática atual, não constitui motivo suficiente para a perda ou suspensão do poder familiar, conforme estabelece o artigo 23 do Estatuto da Criança e do Adolescente.
Na prática, o que se observa, é uma enorme carência de programas de atendimento à família, inviabilizando que os pais, por si só, tornem-se aptos ao exercício da paternidade e maternidade. A sentença judicial que suspende os pais do poder familiar, sem estabelecer as condições ou o prazo para a reavaliação, pode tornar-se um fator de risco para que a situação jurídica da criança seja esquecida, especialmente se o infante já tiver vencido os primeiros anos de vida.
A falta de programas de atendimento à família, a falta de políticas públicas, especialmente na área da educação e saúde, capazes de atender à grande demanda que nossa sociedade tem produzido, a inexistência de um plano terapêutico traçado com base na realidade de cada família, acaba por elevar o número de crianças institucionalizadas, por longos períodos, e, por via de conseqüência, contribui para o aumento das cifras de privação do direito fundamental à convivência familiar da população infanto-juvenil.
Ao sistema de Justiça, composto por advogados, técnicos, peritos, Ministério Público e Poder Judiciário, cabe uma atuação cada vez mais especializada, ágil, integrada e despida de prepotência, a fim de que possamos mudar, para melhor, a realidade da população infanto-juvenil privada do direito à convivência familiar, alterando o desastroso perfil com que hoje nos deparamos.
Como cidadãos, estudantes, advogados, técnicos, membros do Ministério Público ou do Poder Judiciário, família, sociedade ou Poder Público, somos todos responsáveis pela garantia da proteção integral às crianças e aos adolescentes, como expressam os artigos 227 da Constituição Federal e 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente.
O primeiro passo de uma longa jornada estamos concretizando neste dia 22 de novembro de 2002, através da iniciativa do Instituto Brasileiro de Direito de Família, IBDFAM/RS, presidido pelo Des. Luiz Felipe Brasil Santos, exatamente 12 anos e um dia após a promulgação do Decreto Presidencial n. 99.710, que veio a incluir o Brasil no rol dos países comprometidos com os princípios da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança.
Que a resistência e a esperança demonstradas pela população de crianças e adolescentes que vivem nos abrigos, ainda que, por vezes, com o olhar já sem brilho, por lá se encontrarem esquecidas por um, quatro, seis, enfim, doze ou mais anos, sirvam de estímulo, a cada um de nós, e às Instituições que nos apóiam, para levar adiante um movimento permanente em defesa do cumprimento dos direitos fundamentais da criança e do adolescente, em especial, do direito à convivência familiar, condição essencial à efetivação do princípio constitucional da dignidade humana.
Já encaminhando para a conclusão, resta-nos o alerta no sentido de que os feitos judiciais que envolvem crianças privadas do direito à convivência familiar estão a merecer, de todos nós que estamos representados nesta mesa, uma atuação ágil, tão ágil e eficaz, que seja capaz de manter viva, em cada rosto e coração destas crianças, a capacidade de sorrir, chorar, falar, indignar-se e, principalmente, sonhar com um mundo menos cruel.
Foi em Carlos Drumond de Andrade que buscamos a inspiração para convidá-los, neste dia, a plantarem uma nova semente no coração, a semente da esperança em um mundo melhor para as crianças e adolescentes que se encontram privados do direito à convivência familiar.
Descreve o Poeta:
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos, mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.
Fonte: Ministério Público do Rio Grande do Sul
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