Vivemos num mundo de consumo desigual e irresponsável. Desigual, em termos de sua distribuição pelo planeta (20% da população do planeta mora no hemisfério norte e consome 80% dos recursos do planeta; enquanto os 80% restantes, que moram no hemisfério sul, onde nós nos localizamos, consomem 20% dos recursos do planeta). Desigual, também em termos de sua distribuição pelas classes sociais – todas, igualmente atingidas pela publicidade que mobiliza para o consumo, de uma diversidade e quantidade de produtos cujo valor não está ao alcance do bolso de todos.
Com isso, temos dois problemas sérios a encarar:
1 – O esgotamento dos recursos do planeta, que não mais permitem um consumo irresponsável, já que nossos recursos naturais tendem a se esgotar, e que vivemos hoje uma crise ambiental. Se consumíssemos todos segundo o tão decantado “american way of life”, precisaríamos dos recursos naturais de 5 planetas. E, hoje, temos um só, com o equilíbrio e recursos comprometidos.
Em menos de oito meses, a humanidade usou o saldo de recursos naturais de um ano inteiro da Terra, segundo dados da Global Footprint Network, um organismo internacional de sustentabilidade com sedes na Europa, na Ásia e nos Estados Unidos. Desde 13 de agosto de 2015, o nosso planeta já está “no vermelho”.
– Por isso, em nome da sustentabilidade do planeta, o consumo hoje tem que ser repensado, de modo a torná-lo consciente, sustentável e de qualidade.
Grupos se formaram em alguns países, para estimular a reflexão crítica sobre o consumo. Como, por exemplo, o espanhol “Consuma hasta morrir”, que pretende trabalhar com a contra-publicidade. Como quando, um dia depois do lançamento de uma propaganda de vodka, aparece na tv uma nova propaganda – um velório, tristeza, um caixão no meio da sala e, cobrindo-o, uma bandeira preta com… a marca da vodka que anunciara na véspera. Outra experiência interessante é a que nasceu no Canadá e se espalhou pelos Estados Unidos, e que se intitula “Who needs that?” (Quem precisa disso?).
Na Europa, finalmente temos o apelo ao desconsumo. Para termos uma ideia concreta do que estamos falando aqui, no início do século passado, uma família de quatro pessoas mediamente bem de vida era circulada por cerca de 150 a 200 elementos por toda a sua vida, vestidos e talheres inclusos. Atualmente estimamos em 20.000 o número de objetos, inclusos eletrodomésticos e gadgets repetidos (quem é que não tem em casa um celular antigo esquecido na gaveta, mas que ainda funciona?) com que uma pessoa pode fazer contato no decorrer de sua vida, desenvolvendo muitas vezes uma consequente psicopatologia…
(…)O “ter” é cada vez mais old fashion, fica a dica!
2 – O estímulo e sedução para o consumo atinge igualmente quem tem, e quem não tem os meios de realizá-lo. “Bons valores” devem dar conta de reprimir o desejo não realizável, inclusive das crianças.
– Ocorre que a contenção e superação dos desejos não realizados exige, entre outras coisas, uma maturidade que as crianças não têm, e que vão construindo ao longo da vida. Mas, enquanto isso não ocorre, não é pouco comum a apropriação indevida do produto/objeto-do-desejo, tão sedutora e insistentemente anunciado.
– O estímulo ao consumo, via publicidade – explícita ou não (como no caso de merchandising) tem um espaço privilegiado na grande mídia e, particularmente, na TV.
Nossas crianças são as que assistem a mais tempo de televisão. E – estranha coincidência – são as mais precocemente erotizadas.
Além de modelos e valores, que absorvem via programação e publicidade, há toda uma indústria que estimula e responde a isso.
Como exemplos, podemos lembrar o fato das meninas agora brincarem com a boneca… Barbie, ao invés de brincar de mamãe-filhinha com uma boneca em forma de nenê. Ou seja, mais do que um treino de maternagem, é um modelo de beleza que as meninas são chamadas a introjetar desde cedo. Os sapatinhos e sandálias de meninas acima de cinco anos já vêm com saltinho. As Casas Pernambucanas, há pouco tempo, anunciava sutiãs com enchimento… para meninas de oito anos…
Consequentemente também a estes estímulos, a vivência da vida sexual se realiza cada vez mais cedo .
– Desejos estimulados (quer de produtos, quer de vivências – desde tomar cerveja até ter sucesso junto ao sexo oposto) e de difícil realização têm que ser reprimidos. Auto-reprimidos. E, quando isso não acontece, levam a transgressões.
– Essas transgressões tendem a ser socialmente punidas. E, no Brasil de hoje, discute-se até a redução da idade penal para determinados crimes e transgressões, ao invés de educar mais e melhor as crianças, e oferecer-lhes instrumentos que estimulem e facilitem a discriminação dos valores.
Adultização da infância
Conhecemos várias formas de adultização das crianças, contra as quais a sociedade tem procurado se posicionar e inibir: o trabalho infantil, a exposição a conteúdos violentos, o excesso de responsabilidades, a exposição precoce à sexualidade…
Entretanto, apesar das boas intenções que envolvem a proteção da infância, a questão fica mais difícil ao lembrarmos que na verdade ainda temos várias infâncias em nosso país dependendo da região, da cultura, das condições socioeconômicas, da raça/etnia, enfim…
Como podemos proteger as várias infâncias de uma forma mais concreta em termos de evitar a adultização precoce, a erotização, o desrespeito aos direitos das crianças, a brincar… Com que atores sociais podemos contar para isso?
A família, a escola e a mídia poderiam contribuir com isso.
Mas a família resiste ou não vive as condições necessárias que lhe permitam se posicionar criticamente.
Muitas das famílias mais modestas consideram que tiveram uma boa formação pelo fato de ter que trabalhar cedo ao invés de “ficar por aí, à toa”.
Mães que não têm o hábito de diálogo e de controle que não passe pela punição física sentem falta do direito de palmada – já que seus filhos sabem e defendem os seus próprios direitos e elas perdem a capacidade de controle.
Finalmente, moradias mais precárias tornam as eventuais paredes do quarto porosas ao som das relações que ali se dão.
Por outro lado, o apelo ao consumo e aos modelos e valores dominantes que resultam nos problemas apontados acima são introjetados pela família, que não consegue se posicionar criticamente ante os trejeitos entre-ingênuos-e-sensuais de seus filhos, ante a roupa infantil à venda (sandália de salto, sutiãs recheados para meninas de oito anos etc.)
A escola, com professoras sobrecarregadas e não preparadas para essas discussões, ou mesmo ante o esforço concentrado para derrubar o que resolveram chamar de “ideologia de gênero” nos planos de educação, não parece juntar perspectivas para ser um espaço de discussão dos valores que defendemos.
Resta a mídia…
Mas esta tem sido aqui justamente a disseminadora destes valores e estímulos, que terminam responsáveis pela erotização precoce das nossas crianças, e pelo seu consumismo. O conteúdo da programação e a publicidade têm se combinado nesta função, mais do que qualquer outra.
E que têm se manifestado nas letras do funk pesado, na exposição do corpo, no início precoce da vida sexual e da gravidez predominando entre as meninas caracterizadas como “nem-nem” (nem estudam, nem trabalham).
O estímulo ao consumo parece até a mais amena das manifestações. Mas, seu alcance diuturno e universal sensibiliza os que “podem” e os que “não podem” a vivenciá-lo.
A contenção e a superação dos desejos não realizados exigem, entre outras coisas, uma maturidade que as crianças não têm, e que vão construindo ao longo da vida. Mas, enquanto isso não ocorre, não é pouco comum a apropriação indevida do produto/objeto-do-desejo, tão sedutora e insistentemente anunciado.
Não nos deve passar despercebido o esforço da bancada conservadora em defesa da redução da maioridade penal. Quanto, desta tese absurda, não se sustenta também na transgressão da “apropriação indevida” do que não lhe pertence e nem pode ser adquirido, ao invés de educar mais e melhor as crianças, e oferecer-lhes instrumentos que estimulem e facilitem a discriminação dos valores?
É possível enfrentar a mídia?
Se nós adultos somos impactados pela mídia, imagine o que acontece com as crianças! E não é apenas com relação à compra de produtos mas visões de mundo e modelos que são colocados de variadas formas.
Falamos muito da necessidade de oferecermos para nossos filhos uma alimentação saudável, abrindo mão dos práticos alimentos ultra-processados.
As pesquisas porém mostram que, distraidamente, o que as crianças fazem mais frequentemente enquanto assistem à TV é comer – sem perceber – guloseimas, preferencialmente dessas anunciadas na TV, de alto valor calórico e baixo teor nutricional.
Além disso, a conciliação da vida profissional com a vida doméstica e cuidados com os filhos (a classicamente chamada “dupla jornada”), acaba sobrando pouco tempo para uma alimentação saudável. Sem uma readequação das tarefas domésticas entre homens e mulheres, fica muito difícil para a mulher dar conta de tudo.
Como decorrência disso, somado à vida sedentária que levamos, temos tido um aumento do sobrepeso da população, inclusive entre as crianças – o que preocupa, dado o risco de antecipação das doenças a isso associadas – como diabetes etc.
Mas o risco não está presente apenas nos produtos alimentares anunciados. Brinquedos, roupas, programas, valores, anúncios de bancos e de estilos de vida fazem também o seu caminho já nas mentes dos telespectadores infantis. Precisamos refletir criticamente sobre isso e ver o que podemos fazer a respeito.
Queremos, e podemos até certo ponto, estimular professores e outros atores sociais para discutir e construir uma postura crítica das crianças frente aos apelos de consumo. Queremos contribuir, não só sensibilizando e formando os professores, mas agindo diretamente no que for possível para minimizar estes efeitos.
Entretanto, quanto mais autonomia conseguirmos ajudar a implementar, mais rapidamente teremos o concurso de uma rede de multiplicadores, incluindo também as próprias crianças.
Assim, seria de fundamental importância que elas aprendessem a decodificar criticamente o conteúdo e as intenções da mídia que as atinge, em geral, e não apenas da publicidade identificada como tal.
Neste sentido, um curso de LEITURA CRÍTICA DA MÍDIA lhes daria essa autonomia, amplitude e profundidade.
Tal curso poderia ser dado desde a mais tenra infância, até a pós-graduação. Já temos inclusive uma experiência realizada no Rio de Janeiro em que as crianças, com uma câmera na mão, entendem como se otimiza, minimiza, neutraliza um aspecto qualquer de um cenário, dando-lhe mais – e menos – importância, enfatizando a interpretação que se quer que o espectador dê.
Podemos usar alguns países que têm este curso, como referência. Como, por exemplo, o Canadá.
Ali, eles se propõem a discutir:
– a forma como a mídia – enquanto educadora informal – influencia o comportamento e valores das crianças e adolescentes.
– o estudo sobre a representação da violência nos meios de comunicação, como meio para a compreensão da verdadeira natureza das produções de entretenimento enquanto ficção. Compara a tipologia, frequência e contextualização das cenas de violência na programação, com os dados de sua ocorrência real no Canadá, e discute o impacto e consequência dessa inflação sobre o imaginário da população.
– Ensinar particularmente às meninas que a produção midiática, incluindo os programas e mídia noticiosa, são uma construção deliberada, uma escolha, e não “uma janela aberta sobre a realidade”, por mais que assim pretendam.
– o efeito da espetacularização dos dramas e cenas sangrentas, e da exploração e banalização das guerras e catástrofes naturais – com grande visibilidade mas sem sequência ou continuidade, que amortece os sentimentos normais de compaixão e empatia.
– o que justifica a associação cada vez mais frequente da violência como prerrogativa dos heróis?
– quem se beneficia do uso de violência? Qual a principal motivação?
– a facilidade maior de se exportar filmes e programação com ação e violência, que são mais facilmente entendidos por culturas distintas, do que comédias ou dramas de qualidade, que necessitam de sua contextualização cultural para serem entendidos.
– reações distintas frente a músicas, filmes, jogos etc., mediadas pelas distintas personalidades, histórias de vida, valores , referências etc.
E promovem reuniões periódicas entre professores da área para discutir a adequação da programação e dos efeitos do curso.
Com isso, passaríamos da triste memória da história da criança que, vestindo a roupa de super-homem que acabara de ganhar, se joga pela janela do terceiro andar, crente de que ela o fará voar… que sinaliza dramaticamente como a discriminação entre a realidade e a fantasia da propaganda leva tempo para ser construída… até termos cidadãos, de diversas idades, capazes de se proteger do jogo de sedução publicitário.
O caminho aumentaria a eficiência e efeito preventivo que temos trilhado e que busca não permitir que haja comunicação publicitária diretamente dirigida às crianças.
A moderna tecnologia
A sobrecarga de notícias de violência transmitidos pela mídia é também responsável pela sensação de insegurança das mães que acreditam que seu filho estará mais seguro frente à TV, do que brincando na rua. Isso, somado à dificuldade de multiplicar o seu tempo de modo a fazer caber nele as inúmeras tarefas habitualmente atribuídas às mulheres, fez com que a TV passasse a ser vista como aliada, como uma boa babá eletrônica. Os feitos colaterais disso, vimos acima – obesidade precoce, vida sedentária, catequização pelos valores dominantes, mentalidade consumista etc.
Mas a tecnologia se moderniza e diversifica. Hoje, temos visto mães “ganhando um tempinho” para pensar, conversar com o marido, executar alguma tarefa qualquer, entregando … o celular ao seu filho de menos de dois anos… Este, por sua vez, concorre com os jogos eletrônicos por meio de tablets e iPads. O mundo real e as relações interpessoais vão perdendo espaço para o mundo virtual.
Desenvolvem uma capacidade de concentração e habilidade manual de muito superior à dos pais. Mas… que resultado teremos em termos da capacidade de percepção e interação do ambiente ao seu redor? De sua sociabilidade?
Isso, só pesquisas e o futuro dirão.
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*Rachel Moreno é psicóloga, pesquisadora, especialista em sexualidade humana e em meio ambiente, e integrante da Rede Brasileira Infância e Consumo.