Aparecida Arrais Padilha
Como trabalhar na educação não conhecendo, ou mesmo, pouco conhecendo o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), aprovado em 1990 depois de uma longa e histórica luta por direitos no nosso país? Em 2017, o ECA completa 27 anos de existência e é imprescindível estudarmos e garantirmos o cumprimento desta Lei, utilizando-a como uma importante referência na luta pela garantia dos direitos de nossas crianças e adolescentes, dentro e fora da escola.
Criança, para os efeitos do ECA, é a pessoa até 12 anos de idade incompletos e adolescente é quem possui entre 12 e 18 anos. Em minha trajetória profissional, há 32 anos como professora da rede municipal de São Paulo, tenho trabalhado junto às crianças de creche, do Ensino Fundamental e, nos últimos dez anos, na Educação Infantil. Daí minha ênfase neste nível educacional.
Tanto crianças como adolescentes gozam das prioridades e das primazias dos atendimentos previstos em Lei no que se refere à proteção, ao socorro em quaisquer circunstâncias, à precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública, à preferência na formulação e na execução das políticas sociais e públicas e, finalmente, no que se refere à destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude.
Quem de nós, no entanto, já não escutou, dentro e fora da escola, que o ECA garante muitos direitos e poucos deveres para crianças e adolescentes? Trata-se de uma fala equivocada e resistente à mudança de paradigma em relação ao necessário respeito àqueles que vivem seus processos iniciais de desenvolvimento humano. Até porque, quando nos referimos às crianças, sequer podemos falar em “deveres”. Deve-se falar em “responsabilidades”. Mais um bom motivo para nos dedicarmos ao estudo deste estatuto e sermos muito cuidadosos.
Se concordamos com o fato de que nos educamos em sociedade, pais, familiares, docentes, gestores, autoridades públicas, e profissionais de todas as áreas de atuação devem primar pela construção de um mundo mais justo e melhor para crianças e adolescentes. E, evidentemente, para si próprias. Por isso é que se faz importante incluir o estudo do ECA não apenas entre professores e coordenação pedagógica das escolas, mas também junto a todos os funcionários de apoio das unidades educacionais que, afinal, são igualmente educadores.
Mas a necessidade do estudo do ECA não se restringe apenas ao contexto da educação formal, isto é, que acontece intramuros escolares. Aprendemos que a educação pode ser informal (na família), não-formal (na comunidade, na sociedade em geral) e formal (dentro da escola). Preferimos dizer que a educação acontece em todos os cantos. Se assim é, seria função do próprio estado criar condições para que pais, mães, familiares e comunidade possam também conhecer este estatuto com profundidade, até porque recebemos crianças, em nossas escolas, vítimas de toda sorte de violações aos seus direitos, frutos de violências domésticas físicas e psicológicas, de bullying, de preconceito e discriminação.
Os diferentes segmentos que trabalham na educação infantil, por exemplo, raras vezes participam de processos formativos sobre o ECA, justamente este público que teria grande potencial para ser, ele próprio, formador sobre o tema para familiares e comunidade em geral, contribuindo para a criação virtuosa de uma rede de pessoas e instituições capacitadas para tratar deste tema.
Quão importante seria se todos os profissionais que trabalham na Educação Infantil pudessem compreender que, de fato, são educadores, pois estão em permanente diálogo e contato com as crianças, apesar de suas diferentes atribuições. Se isso é verdadeiro, é fundamental que conheçam também os direitos e responsabilidades das crianças, até para que possam compreender melhor a relação que eles estabelecem com elas, passando a respeitar mais o universo infantil e, com ele, dialogar mais respeitosa e cuidadosamente.
O estatuto fala também em “oportunidades e facilidades”, ou seja, do que crianças e adolescentes necessitam, efetivamente, para terem uma vida digna e uma educação de qualidade sociocultural e socioambiental. Isso significa que devemos estar atentos, quando educamos e nos educamos com os nossos alunos, em relação aos seus direitos fundamentais, ou seja, direito à vida, à saúde, à liberdade, ao respeito, à dignidade, à convivência familiar e comunitária, à família natural ou substituta, à tutela, à doação, ao direito fundamental à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à proteção no trabalho, e a todo o tipo de prevenção, proteção e políticas públicas de atendimento que a criança e o adolescente exigem para serem.
Chamo à atenção, especialmente, o artigo 16 do ECA, que fala dos direitos à liberdade das crianças e adolescentes, sobretudo em seus incisos II (opinião e expressão), III (crença e culto religioso), IV (brincar e praticar esportes e divertir-se), V (participar da vida familiar e comunitária, sem discriminação) e VI (participar da vida política). Igualmente importante é o que lemos no artigo 18, quando este estabelece que “é dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor”. Só estes incisos e artigos nos permitiriam profundas discussões no contexto da escola, o que os convido a fazer, por exemplo, em reuniões do horário pedagógico coletivo. Algumas perguntas que poderiam orientar estas discussões:
1. Temos nós, educadores, garantido o direito à liberdade de nossas crianças e adolescentes, dentro de nossas escolas e salas de aula e, por conseguinte, dialogado com elas e respeitado as suas opiniões e expressões? Temos sabido escutar as suas perguntas com calma, paciência e respeito, na direção de provocarmos reflexões conjuntas para encontrarmos as respostas que eles buscam em nós?
2. A educação no Brasil é laica. Mas, se assim é, por que tantas vezes a escola reza o “pai nosso que estás no céu”, fecha no feriado de Nossa Senhora Aparecida e, raramente, para não dizer nunca, vemos encontros ecumênicos em nossas escolas, nos quais as várias religiosidades poderiam se manifestar de igual para igual?
3. Nossas escolas têm organizado seu currículo, garantindo que a criança tenha acesso a brincar, a praticar esportes e a divertir-se dentro e fora das escolas? Fala-se muito em educação integral, mas temos tido, nas nossas escolas, condições infraestruturais e materiais, além de professores atualizados e bem formados, para trabalharem com os esportes, com as artes, com a educação física numa perspectiva emancipadora, como já foi amplamente discutido e aprovado no atual Plano Nacional de Educação? Aliás, conhecemos o que está previsto nesse sentido no PNE, participamos ativamente de sua discussão e aprovação?
Quando o PNE foi aprovado, após vários anos de discussão, o Brasil clamava pela universalização, até 2016, da Educação Infantil na pré-escola para as crianças de 4 a 5 anos e ampliar a oferta de Educação Infantil em creches, de forma a atender, no mínimo, 50% das crianças de até 3 anos até o final da vigência do plano (meta 1).
Previa-se também a formação de professores e recursos para se garantir tal meta. Mas, infelizmente, com a recente aprovação em segundo turno da PEC 55, no Senado Federal, os gastos sociais ficaram congelados por 20 anos. Vivemos grande preocupação em relação aos avanços sonhados, planejados e, agora, já começamos a sentir os efeitos do corte orçamentário. Grande retrocesso, sem dúvida, que nos exige resistência, criatividade e ação política consistente.
Evidentemente, a responsabilidade com a Educação Infantil é do município. Todos sabemos, no entanto, da enorme defasagem no Brasil entre demanda e oferta de creches e escolas de Educação Infantil nos municípios brasileiros. E sem recursos faltarão a estas instituições de acolhimento, cuidado e de educação das crianças, as condições mínimas necessárias para que os objetivos e metas do PNE, como os princípios e objetivos do ECA, sejam minimamente cumpridos e alcançados. A pergunta que fica é: mas, afinal, o que ainda pode ser feito?
Paulo Freire escreveu que era esperançoso não por teimosia. Era esperançoso por imperativo existencial, isso significando que nunca podemos deixar de sonhar e de nos organizar para promovermos mudanças, mesmo que em determinados contextos políticos, ou de crise, como agora, o medo pareça ser maior que a ousadia, e a desesperança teime em visitar as nossas escolas.
É fundamental que nós, educadores, criemos espaços de participação na escola desde cedo, pois a cidadania se exerce desde a infância. Aprende-se a ser cidadão desde a tenra idade, no diálogo, no conflito, reconhecendo a existência de direitos e responsabilidades, mas de forma a construirmos relações democráticas e participativas nas escolas e na sociedade, o que são aprendizados fundamentais na formação e no desenvolvimento da criança.
Se hoje vivemos num contexto político e econômico desfavorável à própria democracia e à educação mais participativa, isso é mais um convite para que organizemos a participação da criança e do adolescente na vida política do País, na forma da lei, contribuindo para a busca constante da sua dignidade. Isso se faz, no contexto escolar, incluindo as crianças, de forma lúdica, carinhosa, poética, brincante, esportiva, curiosa, artística, criativa e reflexiva, nas atividades da vida cotidiana da própria escola, para que efetivamente possamos contribuir para o desenvolvimento delas com dignidade, com respeito às suas diferenças, com percepção de suas semelhanças culturais.
Desta forma, estaremos colaborando para a reafirmação da meta 1 do PNE, que já não foi cumprida, mas que devemos perseguir. E continuaremos trabalhando vigilantes para que o ECA, que é um dos fundamentos legais do próprio PNE, seja efetivamente conhecido e sirva de referência importante na educação das crianças.
Aparecida Arrais Padilha é pedagoga, licenciada em Educação Artística. Trabalha há 32 anos na Prefeitura Municipal de São Paulo, onde é Professora Titular de Ensino Fundamental e de Educação Infantil.